AfroCêntricas apresenta… REEXISTÊNCIA(S) AFROCÊNTRICAS (Texto-fruto)
- Sobre uma vivência plena na Ancestralidade -
Por James X — @afrocentricas4p
Iniciando…
Quando se trata de Ancestralidade, podemos defender que REEXISTIR é consequência de RESISTIR, e uma realidade relacionada estreitamente com EXISTIR. Para tratar desse tema, o Kilombo AfroCêntricas reuniu-se no último domingo de junho de 2019 para dialogar com nosso Povo. O alvo, na ocasião, foi compartilhar a necessidade — por que não urgência — de reagir com novas estratégias diante do mundo ocidental (e sua lógica destruidora). Para tanto, as forças textual e presencial de guerreiras da realeza preta foram fundamentais para localizarmos e discutirmos o que, de fato, significa vivenciar uma Reexistência Afrocêntrica. Eu, James X, tive a honra de ser o MC (Mestre de Cerimônias) da data. A seguir, junto com a Família AfroCêntricas, compartilharemos os principais pontos do “AfroCêntricas apresenta: Reexistência(s) AfroCêntricas”, evento que encerrou o primeiro semestre de ações de debate e reflexões voltadas a nossa Ancestralidade. Um trabalho que destaca, como diria o Honorável Steve Biko, um Povo Preto orgulhoso.
Nas próximas linhas, apresentaremos um passeio pelo tema, assim como pelo momento de troca e conhecimento — ou seja, as principais percepções decorrentes de nosso último evento do semestre.
Boa leitura, irmã! Boa leitura, irmão!
UBUNTU
James X
REEXISTIR? RESISTIR? — Entendimentos vitais
Este texto é um desafio que tenta não se estender em uma discussão sobre algo que não se pode definir, mas que se vive. Sem tantos rodeios, estamos falando de REEXISTIR.
Inicialmente, a palavra chegou a mim, James X, pelo texto da Profa. Dra. Ana Lúcia Silva Souza, em seu trabalho de doutorado intitulado “Letramentos de reexistência: culturas e identidades no Movimento Hip Hop” (disponível aqui). Nele, a pesquisadora, que é linguista, em cinco capítulos, traça um caminho teórico-prático mostrando como a linguagem pode servir como um recurso poderoso para a resistência. A conexão comigo foi imediata. Parando, por exemplo, menos de cinco minutos, não é difícil enumerar as opressões às quais o Povo Preto é submetido pela lógica da brankkkitude; assim, é cada vez mais necessário pensarmos modos de manter-nos íntegros/as diante de tantos ataques. A pesquisa da Dra. Ana Lúcia Silva Souza foi encerrada há dez anos: e ainda hoje, nos últimos cinco séculos deste país, boa parte de nosso Povo não sabe bem o que é/ser em um mundo de plástico e desproporcional.
Para a Dra. Ana Lúcia, de acordo com seu trabalho, em teoria, reexistir é, de forma geral, algo realizado por meio da captura da “complexidade social e histórica que envolve as práticas cotidianas de uso da linguagem” (SOUZA, 2009, p. 32) e, ainda segundo sua tese, engloba práticas promotoras dos usos linguísticos (que envolvam aspectos de transformação social — inspiradas e direcionadas por/para além do ensinado e aprendido tradicionalmente em instituições clássicas, como a escola, por exemplo).
A voz da Profa. Ana Lúcia, com sua pesquisa, aproxima-se, pois, de um movimento centrado em não cedermos às investidas da brankkkitude e(m) suas fórmulas de redução e apagamento das múltiplas identidades do Povo Preto. O foco, no caso da tese da Professora, é, inicialmente, a linguagem. Assim sendo, sim, é fundamental observamos com bastante atenção o potencial linguístico. Para reexistirmos, é vital o estímulo a formas coletivas de se comunicar e interagir no mundo, baseadas no entendimento de si e das potencialidades de ação em um contexto de reconhecimento nosso como Povo, Povo Preto.
É por tal razão que tratar de reexistir compreende (e alimenta(-se d))a ação de resistir. Sobre isso, falaremos de forma mais específica na próxima sessão.
Irmãos e irmãs, reforçamos: reexistir e resistir são ações que se complementam, que se autonutrem; no entanto, precisam de uma, digamos, ativação para o acesso a essa nova dimensão. Tal movimento trará, sem dúvidas, novo rumo à vida da pessoa preta. Estamos falando, neste momento, de Ancestralidade, uma efetiva conexão com o que nos estabelece nesta Existência: Aquilo que reside em nós e que nos protege como povo diferente dos/as adoecidos/as terminais pela lógica ocidental brankkka. Irmã, procure saber mais sobre Ancestralidade. Irmão, permita-se viver o que é nosso, apenas nosso e que nos sustenta — mesmo que não se consiga teorizar.
REEXISTÊNCIA — Não é de nossa Natureza estar só
Está escuro, é sobre Ancestralidade que se apoia a Honorável Sobonfu Somé ao nos presentear com “O Espírito da Intimidade” (disponível aqui). O livro nos permite saborear o que é basilar para não sucumbirmos (e, aqui, estamos destacando questões mórbidas ligadas ao individualismo e à imaturidade ocidental, tais como ansiedade, depressão, vícios etc.); embora curto, é impossível sintetizar de maneira honesta um texto como “O Espírito da Intimidade”, por ele apresentar uma maneira prática de reexistência baseada na Ancestralidade.
“quando você não tem uma comunidade, não é ouvido, não tem um lugar em que possa ir e sentir que realmente pertence a ele; não tem pessoas para afirmar quem você é e ajudá-lo a expressar seus dons. (…) Além disso, a falta de comunidade deixa muitas pessoas com maravilhosas contribuições a fazer sem ter onde desaguar seus dons, sem saber onde pô-los. Quando não descarregamos nossos dons, vivenciamos um bloqueio interior que nos afeta espiritual, mental e fisicamente, de muitas formas diferentes.” (SOMÉ, 2007, p. 35)
A noção e a vivência na comunidade — que, em nosso entendimento, também é o de Família — salva, revela os dons, faz a gente ter um motivo de ser/estar neste mundo. Com base nisso, percebemos que a Honorável Sobonfu Somé relata e defende uma lógica totalmente avessa à ensinada a nós nas fábricas do pensamento ocidental, desde nossa juventude, nos espaços tradicionais (já mencionados por Ana Lúcia Silva Souza e discutida na seção anterior): a de que precisamos ser ‘melhores’ sempre, e ainda mais quando se trata de uma pessoa preta em realidade de carência. Isso de provar não ser um estereótipo ambulante tem reforço na historinha terrível de ‘ter de ser duas vezes melhor do que os outros’ (quem de nós, pretos e pretas, já não ouviu esse tipo de coisa?). Percebamos, então, que inclusive disso parte muito de nosso adoecimento psíquico: afinal, como ser duplamente ‘melhor’ em uma sociedade estruturada para nos anular (vendo-nos como uma ‘raça ruim’) e inferiorizar nossa existência a partir de reduções (ora por aspectos físicos, ora por estereotipias)? Então, irmão e irmã, atenção, não é saudável comprar esse discurso de (adoecer para) ‘ser melhor’: um dos acessos para sobreviver com alguma integridade nessa sociedade é resistir reexistindo — e a reexistência (aqui, em conciliação com a proposta da Dra. Ana Lúcia) passa pelo reconhecimento de nós mesmos/as como parte viva de um povo de Luta. O reconhecimento mencionado implicará a percepção da necessidade do autocuidado, bem como do cuidado com quem está ligado/a a nós pelo laço da Ancestralidade.
Podemos, dessa forma, entender que, ao experimentar meios de reexistência, nós resistimos e de forma mais forte: em grupo, em comunidade, acolhendo e respeitando quem está tão machucado/a e adoecido/a quanto nós. É, sem dúvidas, uma maneira de não perecer em espaços nos quais não somos desejados/as ou genuinamente aceitos/as, em espaços que tentam sistematicamente eliminar nossa identidade como Povo. Reexistir, portanto, é uma maneira de não desaparecermos e essa possibilidade só se consolida quando nos conectamos com nossa História, como Povo, quando conhecemos o que fomos, o que somos a fim de pavimentar o que seremos.
REEXISTIR — sinônimo de nunca desistir
Em tempos como os que vivemos, há possibilidades bem mais acessíveis de conhecer formas alternativas de existir; se pararmos para observar com cuidado, todos os anos uma nova maneira de negar as atrocidades que a vida ocidental nos empurra fica ‘na moda’: percebamos, com isso, como, na maioria das vezes, tais novidades remetem a filosofias tradicionais, quase sempre, em sua maioria, voltadas para o lado oriental do globo. Sim, para esta sociedade, apropriar-se do que parecem ser saídas de sobrevivência à própria confusão construída para ser ‘a vida normal’ já se transformou em algo que pouco se discute.
Um exemplo é como pessoas donas de empresas que danificam a mente e a identidade de outras pessoas ficam bastante à vontade em suas sessões de ‘meditação’ e de ‘ioga’. A mesma coisa há quando vamos a espaços nos quais a palavra ‘Ubuntu’ é usada quase do mesmo modo que a já esvaziada expressão ‘Gratidão’. Diante de tantas ‘violências sutis’, é preciso, mais do que nunca, resistir.
A resistência aqui defendida não se trata de começar, por exemplo, a ‘impedir’ verbalmente que determinadas pessoas falem “Ubuntu”, mas começar, por exemplo, a perceber quem está usando palavras que nos atingem tão diretamente — como conversamos na sessão anterior (que é o caso do UBUNTU) — relacionando-as à conduta da pessoa no cotidiano. Tendo em vista a facilidade de acesso a leituras, autores/as, vídeos etc., o que estamos defendendo é a atenção especial a quanto estamos sendo mais teóricos/as do que práticos/as.
Nós, Povo Preto, somos gente descendente do movimento, da ação: a teoria é um conceito desenvolvido pelos descendentes da lógica ocidental para, registre-se, facilitar o aprisionamento e o dissecar do pensamento (que é algo natural, que existe para ser livre) — o que se conhece também como ‘fazer científico’. Boa parte de nós sabemos o que a ciência já fez e faz com tantos povos, Bichos e Plantas do Planeta. A resistência é a união com reexistir, pois significa pôr em prática o que alimenta nossa Ancestralidade.
Resistir não se trata absolutamente de abrir mão do que está registrado; diz respeito a não cair na tentação de querer insistentemente teorizar coisas que são para viver, para sentir: do contrário, o objetivo sempre será a autopromoção, a autoprojeção, a vaidade — e com elas, vem meio mundo de males que corroem tantos seres humanos. O perigo é focar totalmente na teoria (por exemplo, para nós pretos e pretas, encher-se de vaidade por saber nomes importantes de ancestrais da Luta e de momentos históricos de África) e não parar para perceber as próprias atitudes e ações e práticas: como está a relação com a Família diaspórica? Está havendo o cuidado e, por consequência, o autocuidado — de acordo com o que apresenta a Honorável Sobonfu Somé -? Está havendo a relação entre o que se lê/conhece e o que se vive? Esses são exemplos de perguntas que fazem com que nós observemos se estamos ou não reproduzindo a lógica que nos oprime; ou seja, se estamos (re)apostando fichas no individualismo - como já dito aqui, alardeado como necessário para ‘se dar bem’ na sociedade. Não podemos deixar de lembrar jamais a história que sustenta essa sociedade da exploração.
É preciso, pois, cada vez mais, em tempos de tantas falácias — inclusive reproduzidas por pessoas de pele preta — dedicar-se a conhecer e a desempenhar o máximo possível de criatividade ancestral, a fim de fortalecer nossa comunidade, nossa Família. É nosso papel deixá-La cada vez mais fortalecida e ciente da realeza que a Ancestralidade nos reserva. Isso também é resistência. Isso é Kuumba — o sexto princípio da KWANZAA. Na festividade afrocentrada desenvolvida pelo Dr. Maulana Karenga, trata-se do dia número seis, em que refletimos sobre como recorrer a estratégias criativas para ter uma vida mais leve diante dos ataques constantes da brankkkitude. Kuumba é, então, um pensar como se reconectar com essa característica tão nossa: a de sempre conseguir elaborar meios de não ser pegos/as, capturados/as. Somos um povo que não desiste tão facilmente — tanto que estamos, mesmo depois de séculos de extermínio, ainda lutando por nossos espaços e voz.
Resumindo o que trouxemos até aqui, reexistência, também na perspectiva do Kilombo AfroCêntricas, passa pela conexão de elementos centrais como Família, (Auto)Cuidado, (Auto)Conhecimento (isto é, UBUNTU). Se fosse possível indicar uma trilha para sobreviver de maneira mais leve, ancestral, ou seja, reexistindo, eu poderia indicar a busca por essas três fontes de energia — as quais, em minha percepção, de acordo com a leitura do texto da Honorável Sobonfu Somé, constituem uma fortaleza que descansa em cada ser preto. É apenas preciso despertar para o UBUNTU.
O Espírito da REEXISTÊNCIA — AfroCêntricas apresenta: Reexistência(s) AfroCêntricas: memória
Vamos, neste momento, reviver nosso (re)encontro do último mês (junho de 2019). Durante o mês de estruturação do evento, entrei em contato com a autora do conceito que me influenciou e que deu nome a nosso último encontro do primeiro semestre; falei, então, com a Profa. Ana Lúcia Silva Souza, que me atendeu prontamente, mostrando-se bastante aberta e contente por ver seu trabalho envolvido na proposta. Tendo consolidado que o texto de base seria a obra da Honorável Sobonfu Somé, desenhamos, eu e Abibiman (com participação de Carlos), a dinâmica do dia. Abibiman Kemet sugeriu a presença de uma irmã que unia o entendimento de resistência e de reexistência, a rapper Negratcha (conheça mais sobre ela aqui) — que aceitou nosso convite especial. Foi um momento de alegria geral saber de sua disponibilidade — que, como disse, é uma combativa rapper, estudante de direito, mãe e ativista de nossa Luta.
No dia, então, as pessoas presentes foram saudadas e começamos o encontro tocando “Ouça-Me RMX”, da Tassia Reis (que você pode conferir aqui), para embasar a primeira provocação (direcionada a saber como estávamos existindo nessa sociedade). As pessoas começaram a trazer algumas de suas percepções e fomos trocando nossas visões sobre existência.
Iniciando efetivamente o encontro, levei um recipiente com vários papeizinhos em que estavam escritas as palavras EXISTIR, RESISTIR e REEXISTIR; cada um/a de nós, então, pegou um dos papeletes e definiu o termo de acordo com a experiência de ser preto/a no Brasil. Foi uma situação bastante curiosa porque a definição de EXISTIR, em algumas pessoas, não veio fácil — demonstrando o quão pouco paramos para pensar sobre nossa vivência no dia a dia. No que disse respeito a RESISTIR, explicações foram dadas no sentido de, por exemplo, descobrir e se apropriar de estratégias para se proteger, assim como de tomar fôlego para enfrentar abusos e desrespeitos. No que tratou de REEXISTIR, algumas pessoas definiram como mudar a prática, investir em processos de cura — que tinham a ver com cuidado e autocuidado -, no compreender-se de si e de sua história no mundo em que ocupamos.
No meio da ginga, nossa convidada especial, Negratcha, chegou com sua família. Após sua saudação, executamos uma de suas músicas, “Mercado Negro” (que pode ser ouvida clicando aqui), para que, em seguida, ela começasse a narrar sua trajetória como mulher preta, rapper, periférica, militante, estudante, trabalhadora e mãe de família. Naquele momento, introduzi o trabalho desenvolvido pela Dra. Ana Lúcia Silva Souza, tendo em vista a relação do texto com o movimento Hip Hop paulista. Negratcha fez uma ponte com a realidade sergipana, trazendo vários momentos de sua experiência. Demos prosseguimento ao evento com alguns relatos mais, observando o quanto nos parecíamos em nossas dores e enfrentamentos cotidianos. Em outras palavras, a ginga organizada ressaltou nossa semelhança como Povo alvo preferencial das opressões operadas pela brankkkitude. Não houve Kúdia, pois estávamos em um parque e evitamos a produção de lixo.
As discussões sobre EXISTIR, RESISTIR e REEXISTIR levaram boa parte das horas: em determinado ponto da então noite, tentei, como MC, amarrar os pontos trazidos em “O Espírito da Intimidade” com a proposta do evento: citei alguns trechos do livro e tentei mostrar como a honorável Sobonfu Somé, de certa forma, conectava Família, (Auto)Cuidado, (Auto)Conhecimento, caracterizando o UBUNTU.
Encerramos nosso evento com a seguinte provocação: “Como você reexistirá amanhã?”. Cada pessoa, mais uma vez, deu sua versão para o questionamento e nos despedimos, explicando que o mês de julho seria reservado para o balanço das ações desenvolvidas no primeiro semestre de 2019 — claro, já convidando todos/as para fazer parte da KWANZAA, em dezembro. Encerramos de maneira extremamente bem-sucedida a quarta edição do “AfroCêntricas apresenta…” às 18h.
*Quando não existe inimigo por dentro, o inimigo de fora não pode machucar você (Provérbio africano)