Kilombo AfroCêntricas apresenta… DISCUTINDO: Honorável Carlos Moore (Texto-fruto)
- Racismo & Sociedade -
Por JX, Abibiman Kentake, Amani, Sheila & Dinara Carvalho
Com muita alegria e força, o Kilombo AfroCêntricas compartilhou no ano de 2022 mais um momento em que pudemos nos conectar com Nosso Povo. Estamos falando das duas edições do grupo de estudos “DISCUTINDO: Honorável Carlos Moore”. No evento, tivemos duas oportunidades de dialogar sobre o pensamento de um de nossos maiores mais velhos, no que diz respeito a um pensamento crítico e, ao mesmo tempo, reflexivo sobre nossas existências como pessoas africanas em diáspora.
Ocorrido nos dias 10 e 24 de julho de 2022, o evento do Kilombo teve como ponto de partida a conversa entre o Grande Carlos Moore e a Dra. Iris Amâncio (Licafro-IFF), promovida pela Editora Nandyala em 2020, por ocasião do Mandela Day, em 18 de julho. Aqui, marcamos o vídeo do Honorável Carlos Moore como início (ou “ponto de partida”) porque, durante os dois dias, o AfroCêntricas teve a oportunidade de conversar com irmãs e irmãos em diáspora que se interessaram em compartilhar suas percepções diante da profundidade do pensamento do Dr. Moore.
No que diz respeito ao Kilombo AfroCêntricas, estiveram à frente da ação JX, Abibiman Kentake, Lina e Michele: nós propusemos, então, o desafio de construir um registro escrito do momento — este que está sendo lido por você –, para ampliar o momento tão especial a todas as pessoas participantes. Aceitaram prontamente o convite da construção deste texto: Sheila, Amani, Dinara Carvalho, Abibiman e JX. São essas as mentes que, aqui, reunimos, a partir das perspectivas que, para elas, mais se destacaram, de acordo com os pontos trazidos para debate nos dois finais de semana do “DISCUTINDO: Honorável Carlos Moore”.
O Kilombo AfroCêntricas deseja que você, que nos lê neste momento, tenha uma excelente experiência e que se sinta estimulada e estimulado a estar mais junto nesse verdadeiro (re)encontro.
1. Encarando o racismo de frente: origens e estratégias
Para começarmos esta reflexão, cabe trazer à tona um tema que foi central nos dois dias de encontro do grupo de estudos promovido por nosso Kilombo: a discussão sobre o racismo. Qual seria exatamente seu entendimento? Seria o racismo um fenômeno decorrente do capitalismo e de sua ideologia? Seria ele uma prática, uma dinâmica inventada pela brankkkitude? Mais: como o entendimento adequado de racismo poderia nos ajudar a pensar e repensar nossas existências, como alvos dessa realidade, com o objetivo de nos fortalecermos individual e coletivamente? Essas foram algumas das provocações feitas durante o grupo de estudos.
Podemos começar argumentando que o racismo — ao menos, como divulgam comumente algumas fontes ditas especialistas no tema — não pode ser reduzido ao maniqueísmo (ou seja, entre os brankkkos maus e os Negros bobinhos) nem a uma espécie de mágica impossível de ser compreendida. Trata-se de algo que se liga ao confronto de mundos e de estratégias de enfraquecimento de povos contra povos.
Sobre isso, comenta Sheila que, de acordo com o que viu e ouviu das palavras do Honorável Dr. Moore e de suas leituras, não é correto afirmar que o racismo antiNegro surgiu com colonialismo branco europeu, no século XV — o que implicaria o fenômeno como algo marcadamente datado. Como segue explicando Sheila, o grupo desmelaninado, a brankkkitude, por meios estratégicos, globalizou o que se chama de racismo. Seguindo no debate, JX trouxe uma aproximação do que se entende por racismo com o trabalho do Dr. Gersiney Santos sobre processos de inexistenciação — ou seja, a relação direta com a neutralização e o apagamento das existências das pessoas Pretas em um mundo social estruturado a partir da lógica ocidentalizada a partir de práticas do que Abibiman marca como brankkkitude.
Sheila destaca ainda que, de acordo com o Honorável Dr. Carlos Moore, existem diversas experiências de racismos, desde tempos remotos, entre diferentes agrupamentos sociais. O ponto em comum entre esses racismos e o que experienciamos como pessoas descendentes de pessoas Afrikanas que foram escravizadas é que o princípio dessa violência se sustenta, em suas origens, no ataque de povos brancos nômades contra povos Pretos já sedentários nas regiões citadas. Isso significa, relembra Abibiman, que o racismo não é fruto de um processo mecânico nem ideológico. O Honorável Carlos Moore destaca que o racismo é “uma consciência coletiva” que foi historicamente determinada. Isso é muito diferente de uma consciência que foi elaborada ideologicamente” (como se pode ver nos 42 min do vídeo).
Assim sendo, pensando em conjunto, Sheila e Abibiman recordam que o desenvolvimento histórico do racismo faz com que ele se modifique constantemente; dessa forma, não dá pra buscar uma solução olhando apenas para sua origem nem olhando apenas para o tipo de racismo que predomina na idade moderna eurocapitalista. Como, então, iremos nos preparar para enfrentar o racismo no século XXI, já que a posições de trabalhos que conhecemos estão sendo extintas, a população Negra crescendo, os recursos se tornando cada vez mais escassos e o avanço da tecnologia como meio de aperfeiçoar a violência contra os nossos corpos? É urgente a necessidade de nos organizarmos política-economicamente, educacionalmente, religiosamente para enfrentar o que está por vir. É necessário romper com todas as culturas AntiAfrika e, principalmente, conhecer e reerguer nossas Ancestralidades.
Com base nisso, dentro das percepções a partir do estudo das palavras do Honorável Carlos Moore e de nosso debate dentro do Grupo de Estudo, muitas são as possibilidades de definição do racismo: sociológicas, psicológicas, cognitivas e até metafísicas, mas o que não se pode dizer do racismo é que se trata de pura ideologia de parte da população branca — mais especificamente, a capitalista, a da direita, a burguesa etc. –, pois o racismo é algo que se relaciona com a consideração de inferioridade que foi atribuída historicamente às pessoas que não pertencem ao que se quer como positivo para a brankkkitude.
2. Racismo e sociedade: o que nós Povo Preto precisamos ter em mente
Como indicado no início deste registro, um dos pontos de diálogo se concentrou em como esse tipo de informação histórica repercutiria em nossa vida, em nosso dia a dia. Especificamente sobre esse ponto, falaremos mais adiante; neste momento, centralizaremos a reflexão na necessidade de ampliar a ótica sobre o entendimento do racismo, no que foi explicado até aqui.
Precisamos marcar que este texto não está pensado para concorrer com as sempre muito utilizadas conceituações do racismo, pois boa parte delas está bem acomodada nas tentativas de construir teorias acadêmicas (filosóficas, sociológicas ou antropológicas) para apresentar a um público especializado meios de construir narrativas de compreensão de um fenômeno (ou seja, do racismo). Interessa-nos, na verdade, aproximar o que pode ser visto como informação histórica em um conhecimento de aplicação em nosso cotidiano, para elaborar estratégias de luta que não fiquem apenas em conceitos.
Aliás podemos dizer que nisso também reside a imensa contribuição do Honorável Carlos Moore sobre o reforço de nossas existências: uma crítica veemente acerca das estratégias de cooptação do espectro político-partidário ocidental diferenciado como esquerda. Já é notória a atitude contestadora do intelectual Moore sobre o lugar da contribuição marxiana, da ideologia marxista e dos discursos da esquerda na configuração do que entendemos como realidade — no que diz respeito, mais nitidamente, ao lugar da pessoa afrodiaspórica nas decisões voltadas para a ação, em quadros de intervenção social.
Em outras palavras, o que discutimos no Grupo de Estudos do Kilombo AfroCêntricas teve de estar relacionado a como, de modo geral, pessoas Negras são vilipendiadas pelo espectro político ocidental de direita e utilizadas como instrumento pelo espectro político de esquerda: sendo que, em ambos os planos, o Povo Negro não obtém meios de se afirmar de maneira protagônica, pois nossas pautas sempre são secundarizadas ou articuladas com outro problema capitalista.
Assim, como mesmo traz o Honorável Carlos Moore na live sobre a qual nos debruçamos (entre os minutos 26 e 28 da conversa no evento de 2020), a complexa questão do racismo é embutida na lógica do chamado imperialismo, o qual, segundo a esquerda, é preciso destruir, transmutando tudo para a chamada luta de classes. Percebamos, portanto, que se trata da diluição da problemática do racismo que, segundo o Honorável Carlos Moore, é uma dissolução sustentada inclusive por notórios pensadores e pensadoras Negros (a partir do minuto 27).
A aliança de pessoas Negras que repetem o discurso marxista tem o poder de inspirar mais pessoas Negras (principalmente, jovens) a se colocarem a serviço de uma lógica que parece encontrar no maniqueísmo direcionado a seu ardiloso oponente capitalista a contraposição perfeita para desenhar um ideal mundo vermelho. Essa concepção de mundo, lembremos, advém de um pensamento europeu e de classe alta, pensado para uma realidade muito distante do que se concebe na Sabedoria Africana.
Nessa relação, a esquerda marxista tece sua própria razão de ser e, em jogos discursivos, utiliza o Povo Negro como mais uma peça de pauta coadjuvante. O racismo, assim, nunca é centralizado como o primeiro passo a ser dado, mas sim como mais um exemplo de consequência do capitalismo e do imperialismo. Enquanto isso o genocídio de Nosso Povo segue praticamente inalterado.
Como destaca Amani, que contribuiu nesse tema, a perpetuação do racismo também tem a ver com quem pode falar e o que pode falar nos espaços institucionais: com base nisso, não é preciso elaborar muito para ver a coerência do pensamento do Honorável Carlos Moore, pois, aqui entre nós, quantos líderes Negros de esquerda tem projeção nos espaços tanto de direita como de esquerda? Quando há, é equitativo o número dessas pessoas, se comparado com o de pessoas brancas? A resposta é clara.
Tomando como premissa o que pode ser falado, ainda de acordo com Amani, aprendemos a partir da narrativa histórica acadêmica que o racismo nasce a partir do capitalismo, com a exploração da mão de obra na obtenção de lucro. O que os referidos estudos do Dr. Moore apontam é que essa narrativa marxista da racialização é extremamente equivocada e tendencialmente articulada, pois centraliza o foco histórico nas expansões europeias e demarca geograficamente um problema pontual e sistemático de poder.
Outro ponto que nos faz um convite a abrir os olhos e a mente: como bem lembrou Amani em nossos debates do DISCUTINDO…, a invisibilidade da narrativa trazida pelo Honorável Dr. Cheikh Anta Diop sobre os berços civilizatórios pode ser observada como indo de encontro à minimização do racismo como um acontecimento datado. Isso tendo em vista que as estratégias de articulação do século XV como uma espécie de nascimento do racismo apagam as marcas de expansão histórica da origem dos povos e não associam a relação entre abundância e escassez com determinadas características sociais e culturais.
Vejamos o que o pensamento corajoso do Honorável Carlos Moore nos propõe também: a retomada honesta dos entendimentos sobre o racismo, focando em conhecimentos geográficos, históricos, sociológicos e biológicos, correlacionados de fato para (re)pensarmos que no caráter metamórfico do racismo e de suas manifestações diversas pelo mundo e pela história da humanidade.
Destaquemos, o racismo, nas palavras do Honorável Carlos Moore, pode ser entendido como “uma consciência coletiva historicamente determinada” (como se pode conferir na definição do intelectual, a partir 01:36:00 da live).
Entender que o racismo não é absolutamente uma prática vilanesca estrutural de gênese capitalista (como, em geral, boa parte do pensamento de esquerda implica), mas sim — como sintetizou Amani — uma estratégia simbólico-material de opressão de povos por povos, de tempos remotos. O racismo é sinônimo de estratégias articuladas de aniquilação da existência de pessoas Pretas (inicialmente, na disputa por alimentos e fertilidade). O domínio desse conhecimento pode ser uma maneira de nós mesmas, Povo Preto, retomarmos nossas narrativas e colocá-las no centro das ações de resistência, sem esperar que a esquerda cômoda na brankkkitude nos salve da direita (esta, motor da brankkkitude).
Para terminar: Existência Preta na(s) prática(s)
Caminhando para o encerramento, recuperamos as memórias de Dinara, que refletiu com o Kilombo AfroCêntricas sobre o pensamento do Honorável Carlos Moore, compartilhamos um de seus questionamentos trazidos para nosso registro: “que trabalho é (…) que estou fazendo? Que impacto o mesmo tem em mim e na minha comunidade?”. A partir da fala de nossa irmã participante, podemos pensar sobre tudo o que foi proposto, tanto no Grupo de Estudos quanto aqui neste texto-fruto, serve dentro de uma realidade tão pesada e massacrante para boa parte de Nosso Povo?
Durante os dois dias de encontro, pudemos conversar, abrir o peito e compartilhar alguns de nossos fardos: foi extremamente importante, mas quisemos também mostrar que — isso da dor dividida — se trata de uma parte necessária de nosso percurso. Afinal, como a própria Dinara antecipa, o Honorável Carlos Moore faz a provocação necessária (em seu texto de 2010): mas pra quem é o trabalho? E mesmo assim, de que trabalho estamos falando aqui?
Os dois parágrafos anteriores terminam com questionamentos e talvez esse seja mesmo primeiro passo, questionar se o que o mundo ocidentalizado tem nos oferecido tem servido para nossas existências. Para tanto, vemos como imprescindível o retorno, a união e o (auto)cuidado. Para cada um dos três atos mencionados, a Sabedoria Ancestral tem um rumo possível: SANKOFA, UBUNTU, UJIMA. Procure saber. É preciso seguir nesse percurso. São apenas três exemplos da pluriversalidade que nos oferece a Ancestralidade.
Assim sendo, vemos que é preciso refletir sobre nossas perspectivas e práticas e tentar se desvencilhar da crença de que esse mundo, que foi desenhado e enfiado em nossas mentes, irá dar espaço para que sejamos plenamente em nossas existências. Como se faz isso? Assim como nos diz o Honorável Carlos Moore em relação à falácia de um ponto exato e limitado do racismo, podemos dizer que não existe uma receita, um manual de instruções para conseguir se separar desse moedor de existências que é a lógica da brankkkitude — disseminada na escola, no trabalho, na mídia etc. O que o Kilombo AfroCêntricas acredita é que esse caminho, e as potenciais saídas, estão diretamente relacionados com a percepção dos pesos que assumimos, que carregamos, ainda mais, e se estamos fazendo isso por nossa conta: cabe à gente valorizar que cada pessoa preta carrega em si um Povo inteiro.
Desse modo, é raça primeiro e todo Poder para o Povo Preto! É conhecer para se conectar para se libertar. Isso só é possível em comunidade.
AXÉ.
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