NARRAR A SI MESMO: LITERATURA, MEMÓRIA E ESCREVIVÊNCIA
Registro da Live “Literatura enquanto possibilidade de afirmação diaspórica” promovida pelo Kilombo AfroCêntricas com Abayomi Jamila (@abayomi.jamila) mediada por Abibiman Kandace, realizada em 18 de julho de 2020.
Escrevo como uma homenagem póstuma à Vó Rita, que dormia embolada com ela, a ela que nunca consegui ver plenamente, aos bêbados, às putas, aos malandros, às crianças vadias que habitam os becos de minha memória. Homenagem póstuma ás lavadeiras que madrugavam os varais com roupas ao sol (…) Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos de minha favela.
Conceição Evaristo
Sabemos que a colonização ocasionou a retirada de uma narrativa própria do africano na diáspora e um afastamento da sua história original com o continente africano. E é diante disso, que estabeleço um convite para todas as pessoas pretas para a escrita de si, para que escreva de modo a assumir posicionamentos políticos e ideológicos, reivindicar o seu local e erguer a voz a partir da sua experiência, de maneira a assumir-se enquanto sujeito da própria narrativa.
Ao pensarmos em literatura na Diáspora é fundamental que a gente compreenda o quanto é desafiador e necessário que pessoas Pretas façam o exercício de ler e ouvir (a todos e principalmente aos mais velhos) sobre as mais diversas dimensões da nossa experiência Diaspórica. É através desse compartilhamento coletivo que criamos as condições de encontrar formas de se ver no mundo. Escrever é uma dessas formas que permite nos reconhecermos no mundo através da literatura.
Assim, a literatura para além de um produto estético apresenta-se como espaço privilegiado para romper silêncios, questionar fatos históricos, denunciar nossos algozes, celebrar a memória dos nossos ancestrais, contar nossos afetos e marcar as nossas resistências no cotidiano.
Para a intelectual e honorável Conceição Evaristo (2009a) a literatura é caracterizada pelo modo como o autor irá experienciar a aventura de ser negro e escritor, logo a condição de autor não está desvinculada da sua condição enquanto pessoa branca ou pessoa racializada. Toda escrita tem um sujeito, uma autoria, isso significa dizer também que as palavras que escolhemos são reflexos da maneira como nos vemos no mundo. Dessa forma, por intermédio da Escrevivência, notamos a importância e a possibilidade da literatura como possibilidade e espaço de afirmação da experiência da experiência de Pretos e Pretas na diáspora, fundamentando a nossa escrita a partir de nossos próprios entendimentos e conceitos, significa em um sentido mais amplo também nos afirmar como sujeitos que define a si mesmo enquanto Povo.
Nessa acepção, a Escrevivência aparece como categoria política e epistemológica, ferramenta analítica, que reflete o modo como a autora escreve. Na Escrevivência, temos um texto marcado pela subjetividade e experiência negra, narrativa na qual o sujeito se ressignifica em uma mistura de vivência e ficção.
[…] insisto na constatação óbvia de que o texto, com o seu ponto de vista, não é fruto de uma geração espontânea. Ele tem uma autoria, um sujeito, homem ou mulher, que com uma “subjetividade” própria vai construindo a sua escrita, vai “inventando, criando” o ponto de vista do texto. Em síntese, quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência” e que por ser esse “o meu corpo, e não outro”, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta […] (EVARISTO, 2009a, p. 18).
Ao narrar os processos da própria escrita, a escritora Conceição Evaristo (2009b), em depoimento concedido durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, disserta: “[…] o que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo”. Portanto, cremos assim que, escrever é realizar o sonho de nossos Ancestrais através da literatura, uma vez que escrevemos sobre aqueles que vieram antes de nós.
Parafraseando Audre Lorde, a literatura não é luxo! É uma necessidade. Escreva! Não preocupe-se com o formato ou a gramática, experiencie o próprio percurso. Escreva, porque podemos até ser pobres, mas “não somos pobres de experiências”, como disse Gloria Anzaldúa.
REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, p. 229–265, 2000.
EVARISTO, Conceição. Literatura Negra: uma poética de nossa afrobrasilidade. Belo Horizonte: SCRIPTA, v. 13, n. 25, 2009a.
EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo por Conceição Evaristo. Depoimento. I Colóquio de Escritoras Mineiras, Faculdade de Letras — UFMG, Belo Horizonte, 2009b.
EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Pallas editora. Edição do Kindle, 2017.
LORDE, Audre. A poesia não é luxo. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 45–49, 2019.