Por que uma Educação Afrocentrada?

Kilombo AfroCêntricas
10 min readJul 12, 2020

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Registro da LIVE “Conexões de Autoamor, Dororidades e Bem Viver” promovida pela Periferia Ambulante (@periferiaambulante)

Por Amani Kemet (@amanimalekemet)

Guerreiras do Daomé

Antes de tudo, peço licença a nossa ancestralidade para assim trazê-la no inicio do dialogo- troca, através de uma canção. Quero partir de desde o processo de pesquisa e orí-entação enfatizando essas conexões que permeiam o viver “preto”. E então, no sentido do caminho anti-horário, do voltar-se para o antes, e trazer e aprender com quem veio “num tempo” “anterior”. Trago aqui uma canção que me foi ensinada pelo Toni Edson (o maravilhoso contador de histórias Afrikanas, que reside atualmente em Maceió) e que a ele foi ensinada por dois irmãos: Floppy Mendonça e Metan Eloge, estes são contadores de histórias da Costa do Marfim. Essa é uma canção na língua Fon (falada na África Ocidental, sobretudo no Benin), a canção é um agradecimento ao criador pela bondade, por estarmos juntos e pelos encontros. E falando no Benin, na noite anterior ao encontro, enquanto estava na repetição da canção, o professor Brice (Rei do Benin, pois é assim que me refiro a ele rsrsrs) começou a conversar comigo virtualmente, pelo celular, isso me deixou extremamente impactada, pois, o Brice nasceu no Benin, assim com a língua Fon.

O Toni transcreveu para mim, de uma forma que eu conseguisse entender o que ele cantava no áudio enviado da canção. Uma forma de facilitar o meu entendimento para uma possível reprodução, o que não quer dizer que seja desta forma transcrita. Eis aqui, apesar de na hora ter me atrapalhado um pouco no canto, pois, a forma como são entonadas as silabas é algo muito particular e às vezes, se torna um pouco difícil, já que o idioma ao qual fomos obrigados a aprender difere demais da composição linguística afrikana:

Aproveito aqui, para trazer um pouco de Nossa História, o intuito é chamar à atenção para o fato de precisarmos conhecê-la cada vez mais, pois, quando adentramos a nossa própria história, conseguimos entender de onde viemos, o que fizemos e assim compreender o que Somos. Cito aqui o honorável Marcus Garvey “Um povo sem o conhecimento da sua história, origem e cultura é como uma árvore sem raízes”. Sendo assim, partamos para o Benin, vem com nós!

O Benin é um país localizado na África Ocidental, berço da tradição religiosa vodun (que segundo o prof Brice etimologicamente significa: espírito, algo que escapa a nossa compreensão, algo divino), é o antigo Reino do Daomé, inclusive, “a importância desse reino para a História do Benin é tão grande que até 1975, o que hoje é chamado Benin era conhecido como Daomé, em honra a esse reino de mesmo nome”. Terra das bravas guerreiras do Daomé que repeliram com sucesso os invasores europeus (obviamente que elas participaram de outras batalhas, mas, kero aqui enfatizar a expulsão dos europeus…rsrsrs. Pesquisem sobre elas e fique maravilhado, assim como eu). Eram mulheres pretas que lideravam tropas de guerra no país africano, treinadas desde a infância com exercícios voltados para o combate, inclusive, no livro “Unidade Cultural da África Negra” de nosso faraó Cheick Anta Diop, ele cita as guerreiras do Daomé, quando em sua historiografia comprova a existência do Matriarcado Afrikano. Três grandes heróis nacionais citados pelo prof. Brice: Gbehanzin, Kaba e Bio Guerra. País explorado pelo colonialismo francês (entendermos o processo de colonização é entender um pouco como o país se apresenta em alguns aspectos até os dias de hoje), segundo ainda o pró Brice, o Benin primeiro país na Áfrika a ter o modelo de democracia nestes moldes atuais, estabelecidos. Tem como capital atualmente a cidade de Porto Novo cujo patrimônio mundial, é o Parque Pendjari. Contando também como uma de suas principais cidades, Abomey (capital do antigo Reino do Daomé, possui Palácios Reais num conjunto de 12 estruturas construídas em argila pelos fons entre meados do século XVII e finais do XIX, o trabalho de baixo relevo feito em barro que conta as histórias de cada reino).

Espero que continuem à pesquisa sobre o lindo e poderoso Benin... Então, sigamos com o retorno para seguir…

SANKOFA

E fechando um pouquinho os parênteses para uma aproximação bastante breve ao grandioso país Benin, voltamos para o contexto do encontro virtual. O que se queria com esse chamamento? Trazer o que vem antes, pois, aprendo diariamente numa recodificação de reconstrução, que o povo preto precisa se mover sempre em Sankofa — precisamos andar para frente, olhando sempre para trás, nosso saber tem fundamento na ancestralidade, na nossa ancestralidade. O Sankofa (símbolo Adrinkra dos povos AKAN- atual Gana) como bem disse o nosso irmão Abibiman em dos vídeos, disponível no ig @historiaencena, “significa o resgate do passado no passado, olhar nas experiências de nossos ancestrais e dos nossos mais velhos, tudo que nós precisamos, encontramos dentro de nossa própria história: a espiritualidade, ideia de família, a nossa saúde, a nossa relação com a natureza” .

Pensando as contribuições pretas para o desenvolvimento e arquitetura das cidades, analisemos as duas imagens que estão dispostas logo acima. Sankofa (enquanto um pássaro que possui a cabeça voltada para trás e possui em seu bico uma espécie de “ovo” “objeto de formato circular”) que já mencionamos rapidamente, e a imagem ao lado de um portão. Mas, aí você pode se perguntar, o que o Sankofa tem haver com o portão? Pois é! Já parou para pensar quais mãos de fato ergueram esse país?

Deste modo, podemos afirmar que o Sankofa também foi um símbolo de resistência e mais ainda, mensagens visuais que o nosso povo fez questão de deixar para nós. Foram os primeiros ferreiros africanos da diáspora brasileira que esculpiram esta arte, sob o molde Sankofa, usando-se de suas memórias e raízes na realização destes trabalhos, tornando-os provas de sua (re)existência.

Sou uma ulher africana na diáspora brasileira, mãe do Ravi, 12 anos. Formada em Filosofia pela UFS e atualmente cursando Pedagogia. Faço parte do Quilombo Afrocêntricas, membro da Unegro –SE, idealizadora e co fundadora do Projeto pedagógico para crianças pretas Raizes Ancestrais, que fica localizado no Espaço Abaô de Capoeira Angola no bairro industrial Aracaju Sergipe.

A perspectiva de nossa conversa é de analisarmos a educação no âmbito escolar. De forma a repensarmos estes modelos “formais de educação” e, de que as mudanças e medidas necessárias não podem ser pensadas nem de forma pontual e muito menos paliativa.

A educação que encontramos nas instituições escolares possui uma denominação bem especifica e recebe um determinante qualificador conhecido como “educação formal”, digo qualificação porque a mesma se diferencia das demais. A educação formal possui um espaço especifico de efetivação, possui um aparato legal que a regula e molda. Possui como um de seus objetivos fins, a formação de “cidadãos” para o mercado de trabalho e, sua base epistemológica e pedagógica tem como base a ciência e suas ramificações cientificas de conhecimento. No entanto, podemos perceber que essa cientificidade é toda uma reprodução de conhecimentos eurocêntricos, que norteiam e constituem, trazendo aqui uma reflexão da Chimamanda Ngozi Adichie da narrativa de uma história única. Sob um viés eurocêntrico de pensar e ver o mundo e que inclusive, determina cronologicamente o início da produção do conhecimento. A exemplo disso é a filosofia em que sua constituição inicia na Grécia, permeia a França, Alemanha e afins. A filosofia da qual a maioria dos países partem, pensam o SER, a forma como esse se constitui, se localiza, socializa, compreende o mundo a sua volta. No entanto, esse modo de pensar considera um sujeito que está deslocado de nossa realidade cultural e consequentemente civilizatória.

Numa compreensão histórica da formação populacional da diáspora brasileira e sua constituição, podemos compreender que a diversidade cultural deveria ser o alicerce das relações sociais, mas, esta nunca foi levada em consideração. Existe uma hegemonia que determina como essa população deve pensar, deve agir, deve falar, deve vestir e deve ficar, e a educação pedagógica das escolas, nada mais é que uma reprodução dessa hegemonia e uma ferramenta para a manutenção do apagamento dos povos que não sejam eles.

Pensando as instituições escolares de ensino ditos “formais”. Uma observação! Até o conceito que eles empregam é excludente, eles são formais, fora disso são conhecimentos geradores para vivenciar a vida, apenas. O que dá margem, por exemplo, para uma professora afirmar em sala de aula, que o conhecimento das benzedeiras não possui base cientifica, então, não pode ser considerado como algo verdadeiro e confiável. Aí já adentraremos para refletirmos a formação dos profissionais em pedagogia, para pensarmos que a educação nestes moldes atuais não serve para pensarmos a pluralidade e muito menos para pensarmos e aprendermos com o povo preto e para o povo preto, por exemplo.

Alguns pontos precisam ser discutidos:

1- A formação de professores da diáspora brasileira: na perspectiva de um racismo cientifico, podemos notar que, os saberes produzidos por pessoas de outros continentes são intencionalmente apagados.

2- Pensando estruturalmente: na gestão escolar (administrativo, gerencial, coordenação), não vemos pessoas pretas, nas salas de aula quase não se é visto, professores pretos são raros. O nosso modelo de sala de aula é da época medieval ( a disposição das carteiras, o professor na frente- detentor do saber)

3- Os livros didáticos perpetuam uma narrativa hegemônica, quando trazem o conhecimento produzido apenas sob a narrativa e construção do saber eurocêntrico, tanto em sua narrativa, nas ilustrações, contexto histórico. Sem contar que os povos ameríndios só são citados apenas na invasão a este território. Os povos pretos tem sua história contada a partir do sequestro transatlântico, na condição de pessoas escravizadas, ou para serem utilizados em exemplos que retomem a imagem de inferioridade ( um amigo comentou em uma live, que trazendo para a disciplina de geografia por exemplo, os povos pretos somente são retratados nas imagens que mencionam favela e pobreza), inclusive é o que os meios de comunicação de massa fazem. Aqui aproveito para pontuar que, essa questão de imagem é fundamental para a construção psicológica do que somos. E aqui é possível afirmar: Senão nos vemos, não somos, não fizemos.

4- A biblioteca é majoritariamente constituída por livros de autores brankos.

5- Aprendemos a tratar a natureza como objeto. A formar o sujeito a partir do individualismo. A pensar a história de uma forma linear. De pensarmos que o novo é sempre o melhor, pois, está relacionado a uma dita “evolução”.

6- Dentre tantos outros pontos….

Diante de tantas provas, podemos perfeitamente afirmar que as instituições, incluindo a escolar, operam para um embranquecimento dos povos pretos.

O que demonstramos é que, precisamos repensar um novo modelo pedagógico para as nossas crianças! Aí você poderia pensar, mas, existem leis que tratam desta questão. Sim, existem: a lei 10639/03, que não é uma conquista de um determinado politico como eles querem fazer acreditar, e sim uma luta de anos do movimento negro alterada pela lei 11645/08 que inclui conhecimentos da cultura indígena e pelo que entendi na prática, quando ocorre, se restringe a disciplina de história.

E a parir do que foi colocado, surge a seguinte questão: Como é possível pensar em alterar esse modelo pedagógico de forma pontual se ele mesmo não “tem interesse” de pensar de forma pluriversal?

E para aprofundarmos a discussão, cito Assata Shakur (mulher preta que participou do grupo ativista e militante Panteras Negras nos diáspora estudinense) e diz que: “Ninguém vai te dar a educação que você precisa para derrotá-los. Ninguém vai lhe ensinar sua verdadeira história, seus verdadeiros heróis, se eles sabem que esse conhecimento irá lhe libertar.”

E aí, retomemos a perspectiva da afrocentricidade, que nos trás um caminho para o centro. Da necessidade de termos a Áfrika enquanto centro, de que o povo africano no continente e na diáspora, estabeleça sua centralidade a partir de si. E isso não está restrito ao âmbito das epistemologias, ou sistematização do conhecimento, e sim de nos tornamos o centro para a nossa própria emancipação. Dentro de nós mora a nossa possibilidade de avançar, de nos mover, de nos curar. A nossa resposta está em nossa ancestralidade, e por isso precisamos nos mover na perspectiva Sankofa. Caminhar para frente sempre olhando para trás. Como afirma Katiuscia Ribeiro, “a nossa ancestralidade não parte de nosso acorrentamento, nossa ancestralidade parte de um momento que não existia corrente e nem quem nos acorrentava”. E fazendo uma conexão com o que foi dito, lembramos do Cheick Anta Diop, também conhecido como “revolucionário cientifico” que trabalhou em seus estudos para nos trazer a nossa verdadeira história e para demonstrar cientificamente, dentre outras coisas, que Kemet (Antigo Egito) fica em Áfrika, e isso muda tudo ou quase tudo, pelo menos para nós povo preto, que é quando paramos para observar características sociais, culturais, econômicas antes da invasão colonial, a grandiosidade dos feitos realizados por nossos povos africanos e temos como parâmetro uma história grandiosa construída e edificada por nós mesmos.

Agora partindo para o âmbito estético, podemos afirmar que, o que nós somos fisicamente é a prova viva que somos o que já foi, o que vem antes, que continuamos a ser africanos, mesmo fora do continente. Que temos uma história grandiosa, que possuímos uma visão de mundo que precisa ser reconectada, que nos mostra que fazemos parte daquilo que o eurocentrismo trata como objeto. Marimba Ani em dos vídeos trazidos pelo canal no youtube Osh1, nos lembra que “o conceito africano do universo é de totalidade espiritual” E aí, muitas das manifestações culturais que ainda trazemos vem confirmar essa afirmação: seja nas religiões de matriz africana, seja numa roda de capoeira, seja na vivência dentro de um quilombo. Outra coisa que ela confirma é a nossa conectividade. Essa conectividade com a natureza, com os outros e com nós mesmos.

E para finalizar deixo aqui uma reflexão: Poder é energia para realizar, fazer as coisas acontecerem, de energizarmos uns aos outros. Precisamos nos potencializar, potencializar os outros, quebrar essa logica de dominação e de “desorientação”. E isso só será possível no movimento do nós por nós, cuja base ética é o Ubuntu.

Link para assistir: Parte 1 + Parte 2

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✊🏾Pra NÓS, Só AMOR. Pra eles a JUSTIÇA de XANGÔ! ✊🏿