Saúde Mental da População Negra

Memórias sobre a Live “Saúde Mental da População Negra” organizada pelo Coletivo Rosa Parks (@coletivo_rosaparks)

Kilombo AfroCêntricas
5 min readJul 7, 2020

Preta, bem-vinda! Preto, bem-vindo! Neste breve texto, registramos a participação de nossa irmã Michelle Souza (@psicologamichellesouza) na live organizada pelo Coletivo Rosa Parks (@coletivo_rosaparks) no dia 22 de maio de 2020. O coletivo foi apresentado como um grupo de acolhimento de estudos e pesquisas sobre raça, gênero, sexualidade e interseccionalidade. A live foi transmitida no Instagram, está disponível no YouTube e teve como tema a saúde mental da população negra.

Camila e Michelle

Eu, Carlos Augusto (@carlosaugusto.sv), muito honrado pela missão, destacarei alguns pontos da live. Vamos lá! A live foi mediada pela assistente social e mestra em direitos humanos (UFG) Camila Santos da Silva. Após afetuosos cumprimentos e saudações, nossa irmã psicóloga iniciou sua fala destacando que não partiria de uma perspectiva decolonial, como tinha sido mencionado pela mediadora, mas sim a partir de nossa perspectiva africano-centrada. Ou seja, precisamos considerar uma perspectiva em que sejamos povo, em que sejamos fundamento e não recorte ou intersecção.

Ao comentar o tema da live, Michelle defendeu que, enquanto população negra ou, melhor ainda, povo africano em diáspora, precisamos entender saúde como prática de produção de saúde e não como ausência de doença. E que, mesmo em meio a sociedades antiafricanas, devemos buscar não apenas reagir, mas reexistir.

A partir de um dos textos recomendados como preparação para a live, cujo título é o paradigma da afrocentricidade e uma nova concepção de humanidade em saúde coletiva, Michelle destacou a importância de entendermos o processo de negação da humanidade dos africanos escravizados, a negação de direitos humanos que persiste até os dias de hoje e a falsa democracia racial.

Neusa Santos

Michelle lembrou ainda, a partir do livro Tornar-se Negro, de Neusa Santos, que somos constituídos subjetivamente por um ideal de ego que faz com que muitas crianças e adolescentes negros e negras desejem, durante longos períodos de suas vidas, ter outra cor de pele, de olhos, ter outro tipo de cabelo. Isso é sobre racismo. Portanto, é fundamental observar a forma como os próprios pais acabam contribuindo para isso. O que aparece nas pinturas que decoram suas casas, nos filmes a que assistem e as bonecas que compram exaltam nossa ancestralidade? Não foi por acaso que o honorável Marcus Garvey, lembra Michelle, construiu uma fábrica de bonecas pretas.

Marcus Garvey

Os mitos pontuados por Neusa Santos não ficaram de fora da discussão. Foram alguns exemplos: o homem preto viril, de falo grande, a mulher preta fogosa, boa de cama, além da necessidade de sermos muitas vezes melhores que as pessoas de outras raças. Esses mitos, muitas vezes, são causa de adoecimento. Uma resposta para esse problema, para que sejamos nosso próprio referencial é sankofa. Michelle explica que sankofa é um símbolo do povo akan que significa volte e pegue. Isto é, voltar na história e pegar tudo que foi perdido durante a maafa: nossa cultura, espiritualidade, cosmologia, entre muitas outras coisas. Maafa, termo proposto por Marimba Ani, refere-se ao nosso holocausto, ao sequestro dos ancestrais para a escravidão e a interrupção de nossa história.

SANKOFA - Sankofa

Quanta riqueza numa só live! Michelle recomendou ainda dois vídeos e outro livro. O livro é O Espírito da Intimidade, de Sobonfu Somé, que mostra como são construídas as relações de intimidade do povo Dagara, como as uniões matrimoniais são reflexo dos propósitos das pessoas, do enriquecimento da comunidade e de sua conexão espiritual. Com o livro, refletimos e reaprendemos sobre organização familiar e vivência em comunidade. Com os vídeos, Tour pelo meu rosto, de Gabi Oliveira, e Menina Pretinha, da Mc Soffia, refletimos e reaprendemos sobre estética, autoestima e identidade.

MC Soffia

Quando Michelle comentava sobre exemplos de comportamentos africanos que resistiram à maafa e ainda são presentes em nosso cotidiano, Camila, a irmã mediadora, lembrou uma tradição muito interessante: a meladinha. Camila contou que a tradição foi muito presente em sua vida, e que era um ritual africano. Assim que se tinha notícia da gravidez, era preparada uma bebida com várias ervas e mel. A bebida ficava enterrada até o nascimento do bebê. Após o nascimento, a bebida era desenterrada e compartilhada numa celebração comemorativa de apresentação do mais novo membro da comunidade.

Michelle ressaltou que essas diferenças de concepção de família têm impacto social muito relevante. Nossa irmã lembrou que a própria psicologia clínica nasceu ligada a uma concepção familiar formada por pai, mãe e filhos. Em nossa realidade africano-centrada, temos um modelo familiar muito mais amplo, em que os avós, tios, primos, vizinhos, amigos ocupam papéis fundamentais na criação dos mais novos. Uma visão familiar desligada dessa realidade, marcada por egoísmo e individualismo, também é causa de adoecimentos. Atenção, preta. Atenção, preto: é com a coletividade que conseguimos reexistir.

Por fim, tivemos um momento para responder perguntas. Foram propostas perguntas sobre práticas de saúde, referências para estudar e criação dos filhos. Michelle deu como exemplos de práticas de produção de saúde: meditação, caminhada, dança, yoga, cultivar alimento, estabelecer uma relação de proximidade com a natureza, além de conhecer nossa própria história por autores e editoras nossas (UCPA, Medu Neter, Ananse). Também foi mencionado o canal do YouTube Osh1, que traz entrevistas e documentários de conteúdos riquíssimos. Há inúmeras referências de autoras e autores pretos. Além dos que já foram mencionados, uma referência que pode ser o ponto de partida é Cheikh Anta Diop. Por fim, sobre as crianças, Michelle reforçou a importância de que os pais sejam exemplo, que vivam em aldeia (isto é, em comunidade, em referência à Sobonfu Somé) e que as referências das crianças reforcem nossa ancestralidade (o que as crianças veem em casa, ao que assistem no celular, na televisão, em quais espaços vivem, entre outros). Que as crianças não sejam ensinadas a chorar, mas a reagir e a se reconstruir.

Crianças e bonecas negras

Então foi isso, preta. Esse foi o papo, preto. Precisamos ser nossa própria referência. Com ideias cheias de poder, numa linguagem bem acessível, que prendeu a atenção de todos do início ao fim, nossa irmã Michelle fez uma live maravilhosa.

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